Estou na poltrona 29. Ninguém atrás de mim. Abro um pouco a janela para entrar ar. Aproximo meu rosto do vidro e deixo o vento bater na minha cara. Trepidação. Vasculho o mundo externo. Paisagem movediça, velocidade. Curva na estrada. O sol vai para o outro lado. Meu rosto é comprimido ao vidro. Afasto-me um pouco. Novamente a transparência, vítreo filtro translucido. Vazio enganoso. Vejo minha imagem refletida tenuamente neste vazio. Não resisto: contração dos músculos faciais: sorriso vazio: sorriso pra mim mesmo.
Meus olhos. Percorro os detalhes: Um, punhado de cílios eriçados. Dois, dobras de pálpebras, sulcos intermitentes: ora sulcos, ora pele esticada, fecho e abro com vagar o olho direito para constatar com o outro olho o movimento de planificação. Três, canto das lágrimas. Aquele cantinho em forma de bico de ave próximo ao nariz, por onde escapam as primeiras lagrimas de um choro, espremo um pouquinho a visão e vejo o bico diminuir em largura como que tentando fazer uma lagriminha teimosa cair. Não cai. Não há nada ali além do vermelho carnal desbotado próximo a elipse branca que emoldura a Iris. Quatro, ainda com a visão focada no lado esquerdo, começo a galgar a esfera branca duplo vitrificada: uma vez pela janela, outra por si mesma. Cinco, chego a semiplanisfera castanho central e vou além, até o pequeno circulo escuro no centro dos olhos: meus olhos refletidos que me encaram do vazio do vidro.
O silêncio é cortado pelo barulho do motor. Estamos saindo da cidade. As vezes o ônibus para. Algumas pessoas entram. Mas ninguém encara o fundo esvoaçante do ônibus. O tempo brinca comigo. É dobradura. Desassosego. Fecho os olhos. Bocejo. Abro os olhos. Sinto um repentino impulso de desviar o olhar. Desconforto. Resisto. São meus próprios olhos, afinal. Quantas vezes vi assim, de perto, num espelho, e sempre foram meus olhos, nada mais. Respiro fundo e mantenho minha posição. Ainda o desconforto. Tento resistir, mas sou vencido pelos meus próprios olhos. Deixo minha visão descansar no veludo da poltrona a frente. Medo. Sinto medo dos meus olhos. Eles sabem demais. Sou transparente pra eles. As estrelas me aparecem. No reflexo, meus olhos percebem um sorriso. Meus olhos permanecem nu, como vim ao mundo. Desde então, consegui vestir meu peito, meu sexo, minhas idéias. Meu olhar resistiu a calcificação do tempo. Quando anoiteço, eles permanecem em alerta. Armando dede cedo o cenário, turvo, e sinuoso de um novo tempo, como as águas de um rio que não cansa de correr. Quando amanheço, ele filtra em várias direções as afluentes, para a contenção de tempestades. Como um rebanho a procura de uma bica d’água. Como um poeta em busca das flores do bem. E quando, a saliva corrosiva de meu verbo não adianta, quando os preâmbulos afetivos do meu monologo se esgotam, e estou nu com o olhar, despido com o silencio, as águas vazam. Meus olhos vazios transbordam, e a minha janela, abre cortinas para o infinito.
(Thor Veras)